Quarto de Despejo - Carolina Maria de Jesus

 É a terceira vez que começo esse livro; dessa vez, finalizei.

Quarto de Despejo se originou a partir de diários de Carolina Maria de Jesus, moradora da favela do Canindé, que ficava próximo ao rio Tietê até a desapropriação para construção da Marginal.

A autora não passou da segunda série do primário. A escrita é simples, as narrativas curtas. Então qual a dificuldade que me fez interromper e retomar a leitura várias vezes? Foram as palavras tão pungentes que atordoam. Do ponto de vista da linguagem, mesmo com a grafia de algumas palavras erradas, as informações não são comprometidas nem a escrita é truncada. Ainda assim, somos conduzidos pelo caminho das pedras com uma narrativa pesarosa, que muitas vezes torna o caminho íngreme para continuar. Não é para menos, já que se trata de um relato da realidade.

Carolina é poética. Vez ou outra encontramos algumas quadrilhas, algumas rimas, frases metafóricas e palavras duras, tão bem colocadas que parecem uma fotografia na parede. Elas estão no exato lugar para te provocar sentimentos apenas com o caminhar dos olhos sobre elas.

A fome é recorrente no livro porque é rotineira na vida dela e de seus filhos: João, José e Vera Eunice. É uma narrativa sobre a sobrevivência deles e dos vizinhos. O nome exprime bastante essa noção e, em uma passagem do livro, ela explica o motivo do nome: a favela é o quarto de despejo da cidade.


Antes e Depois do Quarto de Despejo

O jornalista Audálio Dantas teria que escrever uma matéria sobre a favela quando conheceu Carolina. Ela foi logo apresentando seus diários e percebeu que se alguém tinha que escrever sobre aquela situação, deveria ser quem estava tendo aquela experiência. Foi assim que começou todo o desenrolar da divulgação dos escritos dela até o momento em que houve a publicação do livro.

No livro mesmo Carolina chega a comentar sobre a ideia de transformar sua escrito em livro e também sobre a tentativa de publicar no exterior fracassada. Ela conseguiu esse feito, hoje é considerada uma das maiores escritoras brasileiras, mas na época não serviu para melhorar muito sua vida.

Após Quarto de Despejo, Carolina saiu da favela com os filhos e conquistou uma moradia mais confortável que seu barracão. Porém, não durou por muito tempo e ela voltou para a vida anterior.


O Legado de Carolina

Quarto de Despejo já foi traduzido em 16 idiomas e vendido em mais de 40 países. Após décadas da morte da autora, sua vida e obra continua sendo um símbolo de resistência e atemporalidade. Antes dela já haviam pessoas vivendo em situações precárias como a dela. Na época dela e após ela também.

São 27 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza atualmente. Esse número representa 12,8% da população e é o pior cenário da fome das últimas décadas.

A obra de Carolina é representativa sob muitos aspectos:


  • Classe

Muitos já escreveram sobre favelas, comunidades, cortiços olhando do lado de fora. O Cortiço, de Aluísio Azevedo, é um exemplo disso. A novidade é a narrativa contada do lado de dentro.


  • Gênero

A sociedade é patriarcal e os desafios são maiores para as mulheres. Carolina além de viver em condições precárias trabalhando para dar o melhor aos filhos, também trabalhou dando espaço para mulheres na literatura.


  • Raça

Carolina foi uma mulher preta que mostrou muito bem com suas próprias palavras para milhões de pessoas como é a sociedade para uma mulher preta e pobre. Se já não é fácil ter os impeditivos da classe e do gênero, imagina ter uma cor de pele que muitos consideram inferior.

Ainda assim, ela teve a coragem de se expressar e servir de legado para tantas escritoras que apareceram depois.


  • Linguístico

Em uma sociedade em que se valoriza apenas as ideias de bons articuladores, estudiosos e o preconceito linguístico existe, Carolina nos mostra a verdadeira função da palavra.

Na faculdade de Jornalismo e Comunicação aprende-se a usar a linguagem culta padrão, mas dois pontos são muito salientados. Primeiro, não importa o que você diz e sim o que a pessoa entende. Então, você tem que se expressar claramente para evitar múltiplos sentidos e ruir a comunicação. Segundo, o objetivo principal do texto, tanto da escrita quanto da fala, é transmitir com êxito suas ideias. Isso Carolina faz com maestria.

Se você quiser algo poético, profundo, indo além da exposição simples, que te provoque uma reflexão vai encontrar também dentro do Quarto de Despejo.

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